NOTAS DO EDITOR
Desde que foi escrito por Charles
H. Mackintosh (1820-1896), este artigo sobre a Ceia do Senhor tem sido de
grande auxílio a milhares de cristãos em todo o mundo. Particularmente no
Brasil, foi um dos instrumentos usados por Deus para ajudar a despertar a
consciência de vários irmãos, hoje reunidos somente ao nome do Senhor, para a
verdade, hoje tão menosprezada, da unidade do corpo de Cristo e da expressão
dessa unidade no “um só pão”. Aqueles que o leram, certamente não ficaram
alheios à importância e ao privilégio de se obedecer à ordenança do Senhor,
celebrando a Sua Ceia, memorial de Sua morte por nós, da maneira, no lugar e
sobre os fundamentos que Ele próprio instituiu.
Visando tornar disponível a um
maior número de pessoas as verdades que este texto expõe com tanta clareza,
Verdades Vivas publicou, em 1988, uma edição de A Ceia do Senhor, valendo-se de
uma tradução então existente, feita em Portugal, eliminando do texto apenas as
características e grafia peculiares àquele país. Esgotada essa edição,
decidimos fazer uma nova tradução a partir do original em inglês, voltando a
incluir os parágrafos que, por alguma razão a nós desconhecida, haviam sido
omitidos na tradução feita em Portugal.
Sendo assim, apresentamos aos
leitores de língua portuguesa a versão integral do texto de C. H. Mackintosh,
esperando que muitos possam ter seus corações tocados por tão importante
assunto, e venham a atender ao amoroso convite do Senhor, celebrando a memória
da Sua morte, até que Ele venha nos buscar.
O Editor
PREFÁCIO DO AUTOR
A ordenação da Ceia do Senhor deve
ser considerada por toda mente espiritual, como uma prova particularmente
tocante do benigno cuidado do Senhor e de Seu terno amor por Sua Igreja. Desde
a época de sua instituição até o tempo presente, a Ceia tem sido um testemunho
contínuo, embora silencioso, da verdade que o inimigo tem procurado corromper e
colocar de lado por todos os meios ao seu alcance, de que a redenção é um fato
consumado para ser desfrutado até pelo mais simples crente em Jesus.
Passaram-se dezoito séculos1 desde que o Senhor
Jesus designou “o pão e o cálice” na Ceia como significativos símbolos do Seu
corpo oferecido e do Seu sangue derramado por nós, e apesar de toda heresia,
toda divisão, e toda controvérsia e discórdia, e da guerra de princípios e
preconceitos que a página manchada da história eclesiástica registra, esta
ordenação tão expressiva tem sido observada pelo povo de Deus em todas as épocas.
É verdade que o inimigo tenha
conseguido, em um amplo segmento da Igreja professa, envolver a Ceia do Senhor
em uma mortalha de negra superstição, apresentando-a de uma maneira tal que
efetivamente escondesse do participante a grandiosa e eterna realidade daquilo
que é memorial, substituindo Cristo e Seu sacrifício consumado por uma
ordenança sem efeito algum - uma ordenança que, além de tudo, pelo modo como é
administrada, prova ser de total inutilidade e oposição à verdade. Mesmo assim,
não obstante o erro fatal de Roma relativo à ordenança da Ceia do Senhor, a
mesma Ceia continua a comunicar, a todo ouvido circunciso e a toda mente
espiritual, a mesma verdade profunda e preciosa - ela anuncia “a morte do
Senhor até que venha” (1 Co 11.26). O corpo foi oferecido, o sangue foi
derramado UMA VEZ, para não ser mais repetido; e o partir do pão nada mais é do
que o memorial dessa verdade emancipadora.
Portanto, com que profundo
interesse e gratidão deveria o crente contemplar “o pão e o cálice”! Sem que seja
proferida uma única palavra, são ali anunciadas verdades ao mesmo tempo tão
preciosas quanto gloriosas: a graça reinando; a redenção consumada; o pecado
tirado; a justiça eterna introduzida; o aguilhão da morte banido; a glória
eterna assegurada; “graça e glória” reveladas como o dom gracioso de Deus e do
Cordeiro - a unidade de “um só corpo”, assim batizado por “um Espírito”. Que
festa! Conduz a alma, num abrir e fechar de olhos, devolta no tempo, através de
um período de mil e oitocentos anos, e mostra-nos o próprio Senhor, “na noite
em que foi traído”, sentado à mesa da ceia e instituindo ali uma festa que,
desde aquela noite solene até ao raiar da manhã, deveria conduzir cada coração
crente, ao mesmo tempo, para a cruz que passou e para a glória que virá!
Desde então, esta festa, e pela
própria simplicidade do seu caráter e devido ao profundo significado dos seus
elementos, tem condenado a superstição, que iria querer deificá-la e adorá-la,
a irreverência, que iria procurar profaná-la, e a infidelidade, que a poria
inteiramente de lado. E, além disso tudo, ao mesmo tempo que tem condenado
todas estas coisas, ela tem fortalecido, confortado e levado refrigério ao
coração de milhões dos amados filhos de Deus. É doce pensarmos nisto - é doce
termos em mente, quando nos reunimos, no primeiro dia da semana, em torno da
Ceia do Senhor, que apóstolos, mártires e santos têm se reunido em torno deste
banquete e encontrado ali, segundo a sua medida de compreensão, refrigério e
bênção. Escolas de teologia têm surgido, florescido e desaparecido; doutores e
pais têm acumulado volumes de teologia; heresias implacáveis têm obscurecido a
atmosfera e rasgado a igreja professa de uma ponta à outra; a superstição e o
fanatismo têm mostrado as suas teorias sem fundamento e idéias extravagantes;
cristãos professos dividiram-se em inumeráveis seitas - todas essas coisas
aconteceram, mas a Ceia do Senhor tem continuado, em meio às trevas e confusão,
a contar a sua história simples, mas abrangente: “Porque todas as vezes que comerdes
este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor, até que venha” (I
Cor. 11:26).
Preciosa festa! Graças a Deus pelo
grande privilégio de celebrá-la! E ainda assim ela não passa de um símbolo
cujos elementos devem ser, aos olhos naturais, pobres e desprezíveis. Pão
partido, vinho derramado - quão simples! Somente a fé pode identificar o
símbolo, as coisas representadas, e a fé não necessita das circunstâncias
fortuitas que a falsa religião introduziu com o fim de acrescentar dignidade,
solenidade e temor àquilo que deve todo o seu valor, seu poder e sua
impressionabilidade ao fato de ser um memorial de um fato eterno que a falsa
religião nega..
Que eu e você, querido leitor,
possamos penetrar com mais alento e inteligência no significado da Ceia do
Senhor, e com uma experiência mais profunda nessa bem-aventurança que é o
partir aquele pão que é a “comunhão do corpo de Cristo” e o beber daquele
cálice que é a “comunhão do sangue de Cristo”.
Ao terminar estas poucas linhas
introdutórias, encomendo este artigo aos ternos cuidados do Senhor, rogando a
Ele que possa usá-lo para as almas de Seu povo.
C. H M.
PENSAMENTOS
ACERCA DA
CEIA DO SENHOR
“Porque eu recebi do Senhor o que
também vos ensinei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o
pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Tomai, comei: isto é o Meu corpo
que é partido por vós; fazei isto em memória de Mim.
Semelhantemente também, depois de
cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o Novo Testamento no Meu sangue:
fazei isto, todas as vezes que beberdes, em memória de Mim. Porque todas as
vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice anunciais a morte do Senhor,
até que venha” (I Cor. 11:23 a 26).
Desejo fazer alguns comentários
sobre o assunto da Ceia do Senhor, com o propósito de dirigir a atenção de
todos aqueles que amam o nome de Cristo, e as coisas que Ele instituiu, a um
interesse mais fervoroso e afetivo nesta
importante e revigorante ordenança.
Devemos bendizer ao Senhor por sua
bondosa consideração instituindo, em vista de nossa necessidade, um memorial da
Sua paixão, e também por haver estabelecido uma mesa à qual todos os Seus
membros possam se achegar, sem qualquer outra condição além daquela que é
indispensável: a ligação pessoal e obediência a Ele.
O bendito Senhor conhecia muito
bem a inclinação dos nossos corações de nos esquivarmos dEle, e uns dos outros,
e pelo menos um dos Seus propósitos na instituição da Ceia foi o de impedir
esta nossa tendência.
Ele desejava reunir o Seu povo em
torno da Sua bendita Pessoa; desejava pôr-lhes uma mesa onde, tendo em vista o
Seu corpo ferido e o Seu sangue derramado, pudessem lembrar dEle e da
intensidade do Seu amor por eles, e de onde pudessem também olhar adiante, para
o futuro, e contemplar a glória da qual a cruz é o eterno fundamento. Ali, mais
do que em qualquer parte, eles aprenderiam a esquecer as suas divergências e a
amarem-se uns aos outros; ali poderiam ver à sua volta aqueles que o AMOR DE
DEUS havia convidado para banquetear, e aos quais O SANGUE DE CRISTO teria
tornado idôneos para que ali estivessem.
Todavia, a fim de poder comunicar
mais facilmente ao meu leitor o que tenho a dizer sobre este assunto, vou
limitar-me aos quatro tópicos seguintes:
1. A
natureza da ordenança da Ceia do Senhor.
2. As
circunstâncias em que foi instituída a Ceia do Senhor.
3. Para
quem foi instituída a Ceia do Senhor.
4. A
ocasião e a maneira de celebrar a Ceia do Senhor.
1-
A NATUREZA DA ORDENAÇÃO DA
CEIA DO SENHOR
Este é um ponto de grande
importância. Se não compreendermos a natureza desta ordenança, vamos nos perder
em nossos pensamentos acerca dela. A Ceia é, portanto, pura e simplesmente uma
festa de ação de graças - de agradecimento por graça já recebida. O próprio
Senhor, quando da sua instituição, assinala o seu caráter dando graças: “E,
tomando o pão, e havendo dado graças...” (Lc 22.19). Louvor, e não oração, é a
expressão adequada àqueles que se sentam à mesa do Senhor. É verdade que
tenhamos muito pelo que orar, muito a confessar, muito que lamentar, mas a mesa
não é lugar para lamentações: a
linguagem que emana dela é: “Dai bebida forte aos que perecem, e o vinho aos
amargosos do espírito; para que bebam, e se esqueçam da sua pobreza, e do seu
trabalho não se lembrem mais”. (Pv 31.6,7).
Nosso cálice é um “cálice de
bênção”, um cálice de ação de graças, o símbolo divinamente designado para
aquele sangue precioso que obteve nosso resgate. “O pão que partimos não é
porventura a comunhão do corpo de Cristo?” (1Co 10.16). Como, então, poderíamos
parti-lo com corações tristes ou semblantes carregados? Poderiam os membros de
uma família, depois das fadigas do dia, se assentar à mesa da ceia com corações
tristes e semblantes descaídos? É claro que não. A ceia era a refeição mais
importante da família, a única que reunia toda a família. Os rostos que talvez
não fossem vistos durante o dia, certamente estariam presentes à mesa da ceia,
e não há dúvida de que se sentiriam felizes por estarem ali. O mesmo deveria
acontecer na Ceia do Senhor: a família deveria estar reunida ali, e quando
reunidos, deveriam estar alegres, verdadeiramente felizes, no amor que os
reúne. É verdade que cada coração pode ter a sua própria história peculiar -
suas tristezas íntimas, provas, fracassos e tentações, coisas essas
desconhecidas de todos os demais; mas não são elas o objeto a ser contemplado
na ceia: expô-las seria desonrar o Senhor da festa, e fazer do cálice de bênção
um cálice de dor.
O Senhor nos convidou para a
festa, e ordenou que, apesar de todas as nossas deficiências, puséssemos a plenitude
do Seu amor e a eficácia do Seu sangue entre as nossas almas e tudo mais; e
quando o olhar da fé está ocupado com Cristo, não há lugar para nada mais. Se o
meu pecado for o objeto em vista e o que prende os meus pensamentos, é natural
que eu deva sentir-me miserável, pois estou olhando na direção exatamente
oposta daquilo que Deus ordena que eu contemple; estou recordando a minha
miséria e pobreza, que é exatamente o que Deus me manda esquecer. Deste modo é
perdido o verdadeiro caráter da ordenança que, ao invés de ser uma festa de
gozo e alegria, torna-se uma ocasião de melancolia e de depressão espiritual; e
a preparação para ela, e os pensamentos a seu respeito, acabam ficando mais
para aquilo que se podia esperar em relação ao Monte Sinai (Êxodo 19), do que a
alegre festa de família.
Se alguma vez pudesse prevalecer
um sentimento de tristeza na celebração dessa ordenança, seria, sem dúvida,
quando da sua primeira instituição, quando, conforme veremos ao tratarmos do
segundo ponto de nosso assunto, havia tudo aquilo que podia possivelmente
produzir profunda tristeza e desolação de espírito. Todavia, mesmo assim, o
Senhor Jesus pôde dar graças; o gozo que inundava a Sua alma era profundo
demais para ser perturbado pelas circunstâncias ao Seu redor. Ele sentiu gozo
até mesmo nas pisaduras e nos ferimentos de Seu corpo e no derramamento do Seu
sangue, gozo esse que está muito além do alcance da compreensão e do sentimento
humano. E se Ele pôde alegrar-se em espírito e dar graças ao partir aquele pão
que deveria ser, para todas as gerações futuras dos fiéis, o memorial do Seu
corpo oferecido, não deveríamos nós regozijarmos com isso, nós que estamos
firmados nos benditos resultados de toda a Sua obra e paixão? Sim, isso nos faz
regozijar.
Mas alguém poderá perguntar: Não
deve existir uma preparação adequada? Devemos nos sentar à mesa do Senhor com
tanta indiferença como se nos sentássemos à mesa de uma ceia qualquer? É claro
que não - precisamos ser genuínos em nossos motivos, e o primeiro passo para se
conseguir isso é ter paz com Deus - aquela doce certeza de nossa salvação
eterna que certamente não é o resultado de suspiros ou lágrimas de penitência
vindos do homem, mas a conseqüência simples da obra consumada do Cordeiro de
Deus, confirmada pelo Espírito de Deus. Conhecendo isto mediante a fé, sabemos
o que é que nos torna perfeitamente aptos para Deus.
Há muitos que pensam estar
acrescentando honra à mesa do Senhor quando se aproximam dela com as suas almas
curvadas até o pó, sob um sentimento do peso insuportável dos seus pecados. Tal
pensamento só pode provir do legalismo do coração humano, essa fonte sempre
fértil de pensamentos que são, ao mesmo tempo, desonrosos para Deus, desonrosos
para a cruz de Cristo, injuriosos para o Espírito Santo e completamente
perturbadores da nossa paz. Podemos nos sentir satisfeitos pela honra e a
pureza da mesa do Senhor serem mais plenamente mantidas quando O SANGUE DE
CRISTO é tido como o ÚNICO direito de aproximação, do que quando se acrescentam
a ele a dor e a penitência humana.2
Contudo, a questão da preparação
será melhor entendida à medida em que formos desenvolvendo o assunto. Quero, no
entanto, frisar outro princípio ligado com a natureza da Ceia do Senhor, a
saber, que existe o reconhecimento inteligente da unidade do corpo de Cristo em
ligação com ela. “O pão que partimos não é porventura a comunhão do corpo de
Cristo? Porque nós, sendo muitos, somos um só corpo: porque todos participamos
do mesmo pão” (1Co 10.16,17). Ora, havia faltas lamentáveis e triste confusão a
este respeito em Corinto: com efeito, o grande princípio da unidade parecia ter
sido completamente perdido de vista em Corinto. Por isso o apóstolo observa que
“quando vos ajuntais num lugar, não é para comer a ceia do Senhor. Porque,
comendo, cada um toma antecipadamente a sua própria ceia” (1Co 11.20,21). Havia
isolamento, e não unidade; era uma questão individual e não corpórea: a
expressão “a sua própria ceia” é posta em claro contraste com “a ceia do
Senhor”.
A Ceia do Senhor requer que o corpo
seja totalmente reconhecido: se o corpo não for reconhecido, não passa de
sectarismo, e o próprio Senhor já não tem o Seu lugar. Se a mesa for posta
sobre qualquer princípio mais limitado do que aquele que abrange todo o corpo
de Cristo, torna-se uma mesa sectária e perde seu direito sobre os corações dos
fiéis. Por outro lado, onde quer que a mesa seja posta sobre este princípio
divino, que abrange todos os membros do corpo simplesmente como tais, todo
aquele que se recusar a comparecer, é culpado de cisma, e isto também segundo
os claros princípios de 1 Coríntios 11. “E até importa que haja entre vós
heresias, para que os que são aprovados se manifestem entre vós” (1 Co 11.19).
Quando o grande princípio da Igreja é deixado de lado por qualquer segmento do
corpo, é forçoso que haja heresias, para que os que são aprovados possam se
manifestar. E em circunstâncias assim, torna-se o dever de cada um examinar-se
a si próprio, e assim comer a Ceia. Os “aprovados” permanecem em contraste com
os hereges, ou aqueles que faziam a sua própria vontade3.
Mas alguém poderia perguntar:
Acaso as numerosas denominações existentes atualmente na Igreja professa não
acabam com a idéia de se conseguir unir todo o corpo? E em circunstâncias
assim, não é melhor que cada denominação tenha a sua própria mesa? Se existe
algo que uma pergunta como esta possa insinuar é que o povo de Deus já não pode
atuar segundo os princípios estabelecidos por Deus, mas que lhes resta a
miserável alternativa de proceder de acordo com a conveniência humana.
Porém, graças a Deus, não é este o
caso. A verdade de Deus permanece para sempre, e o que o Espírito Santo ensina
em 1 Coríntios 11 continua a ser uma obrigação para cada membro da Igreja de
Deus. Havia divisões, heresias e iniqüidade na assembléia de Corinto, do mesmo
modo como há divisões, heresias e iniqüidade hoje na Igreja professa; mas o
apóstolo não lhes disse que estabelecessem mesas separadas como uma
alternativa, nem mandou que deixassem de partir o pão como outra. Não, ele
insiste com eles nos princípios e na santidade que estão associados com a
“Igreja de Deus”, e recomenda aos que podem examinar-se a si mesmos - os
“aprovados” do versículo 19 - que comam. A expressão é, “assim coma”. Portanto
devemos comer: nosso cuidado deve estar no “assim”, conforme o Espírito de Deus
nos ensina; e isto em verdadeiro reconhecimento da santidade e unidade da
Igreja de Deus.4
Quando a Igreja é desprezada, o
Espírito é entristecido e desonrado, o fim será, inevitavelmente, esterilidade
espiritual e frio formalismo: e embora os homens possam substituir o poder
espiritual pelo intelectual, e os dons do Espírito Santo por habilidade e
talento humanos, o fim será “como a tamargueira no deserto” (Jr 17.6). O
verdadeiro modo de se progredir na vida divina é viver para a Igreja e não para
nós mesmos. O homem que vive para a Igreja, encontra-se em completa harmonia
com a vontade do Espírito, e irá, necessariamente, crescer. Ao contrário, o
homem que vive para si próprio, tendo os seus pensamentos girando em torno de
si, e a sua energia concentrada na sua pessoa, acaba logo tornando-se
restringente e formal, e com toda a probabilidade, abertamente mundano. Sim,
ele acabará tornando-se mundano, em algum aspecto deste termo tão abrangente;
porque o mundo e a Igreja encontram-se em direta oposição entre si; e não
existe nenhum outro aspecto em que esta oposição seja vista com maior clareza
do que no seu aspecto religioso. Aquilo que é normalmente chamado de mundo
religioso revela-se, quando examinado à luz da presença de Deus, muito mais
hostil aos verdadeiros interesses da Igreja de Deus do que qualquer outra
coisa.
Mas devo passar logo a outras
ramificações de nosso assunto, trazendo mais um princípio bem simples ligado à
Ceia do Senhor, para o qual quero chamar a especial atenção do leitor cristão.
O princípio é este: a celebração da ordenança da Ceia do Senhor deveria ser a
clara expressão da unidade de TODOS os crentes, e não apenas da unidade de um
determinado número reunido sobre certos princípios que os diferenciem de
outros. Se há algum termo de comunhão proposto, salvo o de suma importância que
diz respeito à fé no sacrifício de Cristo e a uma conduta condizente com essa
fé, a mesa torna-se a mesa de uma seita e não tem direito algum sobre os
corações dos fiéis.
Além do mais, se assentando-me à
uma mesa assim, devo identificar-me com qualquer coisa, quer seja um princípio
ou uma prática, que não seja ordenada nas Escrituras como um termo de comunhão,
também, nesse caso, a mesa torna-se a mesa de uma seita. Não é uma questão de
ali existirem ou não cristãos; na verdade seria difícil encontrar uma mesa
entre as comunidades originadas da Reforma da qual não participassem alguns
cristãos. O apóstolo não disse que “até importa que haja entre vós heresias,
para que os que são cristãos se manifestem entre vós. Não, mas “para que os que
são aprovados, se manifestem (1Co 11.19).
Tampouco disse, “Examine-se pois o
homem a si mesmo para ver se é cristão, e assim coma”. Não, mas “examine-se
pois o homem a si mesmo” (1 Co 11.28). Quer dizer, certifique-se que é um dos
que não somente são retos em suas consciências quanto à sua participação
individual, mas que estejam também confessando a unidade do corpo de Cristo.
Quando os homens estabelecem seus próprios termos para a comunhão, aí você
encontrará o princípio da heresia; e aí será também uma divisão. Por outro
lado, onde a mesa é posta da maneira e segundo princípios que um cristão
submisso a Deus pode, como tal, tomar o seu lugar, torna-se, então, cisma não
comparecer; porque com a nossa presença e andando de acordo com a posição que
ali tomamos e a profissão que fazemos, tanto quanto está em nós, confessamos a
unidade da Igreja de Deus - esse grande objetivo para o qual o Espírito Santo
foi enviado do céu à Terra. Havendo o Senhor Jesus ressuscitado de entre os
mortos e tomado o Seu lugar à destra de Deus, enviou o Espírito Santo ao mundo
com o propósito de formar um corpo. Note bem: formar um corpo - não muitos
corpos. Ele não tem nenhuma condolência por muitos corpos, embora tenha uma
bendita compaixão pelos muitos membros que há nesses corpos, pois eles, embora
sendo membros de seitas ou divisões, são, todavia, membros de um só corpo;
porém Ele não forma os muitos corpos, mas somente o único corpo, “pois todos
nós fomos batizados em um Espírito formando um corpo, quer judeus, quer gregos,
quer servos, quer livres, e todos temos bebido de um Espírito” (1 Co 12.13).
Espero que não haja um
mal-entendido quanto a este ponto. Digo que o Espírito Santo não pode aprovar
as divisões na Igreja professa, porque Ele Mesmo disse acerca delas, “nisto,
porém... não vos louvo” (1Co 11.17). Ele é entristecido por elas - e gostaria
de impedi-las; Ele batiza os crentes na unidade de um só corpo, de maneira que
não pode ser admitido, por qualquer pessoa inteligente, que o Espírito Santo
possa apoiar as divisões, que são uma tristeza e uma desonra para Si.
Todavia, devemos fazer distinção
entre a habitação do Espírito na Igreja e Sua habitação nos indivíduos. Ele
habita no corpo de Cristo, que é a Igreja (veja 1Coríntios 3.17; Efésios 2.22),
e também no corpo do crente, conforme lemos: “O nosso corpo é o templo do
Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de Deus” (1Co 6.19). Portanto, o
único corpo ou comunidade no qual o Espírito Santo pode habitar é em toda a
Igreja de Deus; e a única pessoa na qual Ele pode habitar é o crente. Mas, como
já foi observado, a mesa do Senhor, em qualquer localidade, deveria ser a
expressão da unidade de toda a Igreja. Isto nos leva a outro princípio que está
associado à natureza da Ceia do Senhor.
A Ceia do Senhor é um ato mediante
o qual não só anunciamos a morte do Senhor até que venha, mas onde também damos
expressão a uma verdade fundamental, na qual nunca será demais ou inoportuno
insistir para com a consciência dos cristãos em nossa época, isto é, que todos
os crentes são “um só pão e um só corpo”. Trata-se de um erro muito comum
enxergarmos esta ordenança simplesmente como um meio pelo qual é transmitida
graça à alma do indivíduo, e não como um ato relacionado com todo o corpo; e
relacionado também com a glória dAquele que é a Cabeça da Igreja. Que é um meio
pelo qual a graça flui para a alma do que comunga individualmente, não pode
haver dúvida, porque há bênção em cada ato de obediência. Mas que a bênção individual
seja apenas uma pequena parte, pode ser visto pelo leitor atento de 1 Coríntios
11. É a morte do Senhor e a vinda do Senhor que são apresentadas com
proeminência perante as nossas almas na Ceia do Senhor, e onde quer que um
destes elementos seja excluído deve haver algo de errado. Se existir qualquer
coisa que impeça a plena expressão da morte do Senhor, ou a exposição da
unidade do corpo, ou a compreensão clara da vinda do Senhor, então deve haver
alguma coisa que está radicalmente errada no princípio sobre o qual a mesa está
posta, e precisamos apenas de um “olho simples” (Lc 11.34), e uma vontade
inteiramente submissa à Palavra e ao Espírito de Cristo para poder detectar o
mal.
Possa o leitor cristão examinar,
agora mesmo, em um espírito de oração, a mesa à qual habitualmente toma o seu
lugar, para ver se ela passa pelo tríplice teste de 1 Coríntios 11. Se não
passar, você deve abandoná-la, em nome do Senhor e para o bem da Igreja. Há, na
Igreja professa, heresias, e há divisões que provém das heresias, mas
“examine-se pois o homem a si mesmo, e assim coma” a Ceia do Senhor; e se, de
uma vez por todas, alguém perguntar qual é o significado do termo “examine-se”,
pode responder que é, em primeiro lugar, ser pessoalmente fiel ao Senhor no ato
de partir o pão; e, em segundo lugar, estar desvencilhado de toda e qualquer
divisão, assumindo uma posição firme e decidida sobre o amplo princípio que
abrange todos os membros do rebanho de Cristo. Não só devemos ter o cuidado de
andar em pureza de coração e vida perante o Senhor, mas também de verificar que
a mesa da qual participamos nada tenha a ela associada, que possa de algum modo
agir como um impedimento à unidade da Igreja. Não se trata de uma questão
meramente pessoal.
Não há nada que prove de maneira mais
completa a decadência da cristandade nestes dias ou o terrível grau em que o
Espírito Santo é entristecido, do que o miserável egoísmo que mancha, sim, que
polui os pensamentos dos cristãos professos. Tudo é feito para girar em torno
da mera questão do ego. É o meu perdão - a minha segurança - a minha paz - o
meu jeito de ser e os meus sentimentos, e não a glória de Cristo ou o bem da
Sua amada Igreja. Daí a necessidade de aplicarmos ao nosso estado as palavras
do profeta Ageu: “Assim diz o Senhor dos Exércitos: Aplicai os vossos corações
aos vossos caminhos. Subi ao monte, e trazei madeira, e EDIFICAI A CASA, e dela
me agradarei; e EU SEREI GLORIFICADO. Olhastes para muito, mas eis que
alcançastes pouco; e esse pouco, quando o trouxestes para casa, eu lhe
assoprei. Por que causa? disse o Senhor dos Exércitos: por causa da minha casa,
que está deserta, e cada um de vós corre à sua própria casa” (Ag 1.7-9). Eis
aqui a raiz da questão. O “eu” permanece em contraste com a casa de Deus; e se
o “eu” for colocado como nosso objeto, não é de admirar que haja uma triste
falta de gozo, energia e poder espiritual. Para possuirmos estas coisas temos
de estar em comunhão com os pensamentos do Espírito. Ele pensa no corpo de
Cristo; e se nós estivermos pensando em nós mesmos, devemos necessariamente
estar em desacordo com Ele; e as conseqüências se evidenciam.
2-AS CIRCUNSTÂNCIAS EM QUE FOI INSTITUÍDA A CEIA DO SENHOR
Havendo tratado daquilo que
considero ser, de longe, o ponto mais importante em nosso assunto, devo seguir
considerando, em segundo lugar, as circunstâncias em que a Ceia do Senhor foi
instituída. Foram circunstâncias particularmente solenes e tocantes. O Senhor
estava a ponto de entrar em um terrível conflito com todos os poderes das
trevas - iria enfrentar toda a terrível inimizade do homem; e esgotar, até o
fim, o cálice da justa ira de Jeová contra o pecado. Tinha diante de Si um
terrível amanhã - o mais terrível que jamais foi enfrentado por qualquer homem
ou anjo; todavia, a despeito de tudo, lemos que “na noite em que foi traído,
tomou o pão” (1Co 11.23). Que amor mais desinteressado! “Na noite em que foi
traído” - noite de profunda dor - a noite de Sua agonia e de suor de sangue - a
noite em que foi traído por um, negado por outro e abandonado por todos os Seus
discípulos - nessa mesma noite, o coração amabilíssimo de Jesus estava cheio de
pensamentos acerca da Sua Igreja - foi nessa mesma noite que Ele instituiu a
ordenança da Ceia do Senhor. Ele designou o pão para ser o emblema do Seu corpo
oferecido, e o vinho para ser o emblema do Seu sangue derramado, e é o que
agora eles são para nós, todas as vezes que deles participamos, pois a Palavra
assegura que “todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice
anunciais a morte do Senhor, até que venha” (1Co 11.26).
Podemos dizer que tudo isso
concede peculiar importância e sagrada solenidade à Ceia do Senhor; e, além
disso, nos dá uma idéia das conseqüências de se comer e beber indignamente.5
A voz com que a ordenança sussurra
ao ouvido circunciso é sempre a mesma. O pão e o vinho são símbolos de um
significado profundo; o trigo moído e a uva esmagada combinam-se para dar
forças e alegria ao coração: e não são apenas significativos em si mesmos, mas
também são para serem usados na Ceia do Senhor como os próprios emblemas que o
bendito Senhor em Pessoa ordenou na noite anterior à Sua crucificação; de modo
que a fé pode reconhecer o Senhor Jesus presidindo à Sua própria mesa - pode
vê-lo tomar o pão e o vinho, e ouvi-Lo dizer: “Tomai, comei, isto é o Meu
corpo”; e também do cálice, “Bebei dele todos; porque isto é o Meu sangue, o
sangue do Novo Testamento, que é derramado por muitos, para remissão dos
pecados” (Mt 26.26-28). Em suma, a ordenança reconduz a alma àquela noite à
qual já nos referimos - coloca diante de nós toda a realidade da cruz e da
paixão do Cordeiro de Deus, em que toda nossa alma pode descansar e se
regozijar; faz-nos lembrar, da maneira mais tocante, do amor desinteressado e
da pura devoção dAquele que, quando o Calvário projetava a sua negra sombra
sobre o Seu caminho, e o cálice da justa ira de Jeová contra o pecado, do qual
Ele estava a ponto de ser a vítima de expiação, estava sendo cheio para Si,
podia, contudo, ocupar-Se de nós e instituir uma festa que haveria de ser ao mesmo
tempo a expressão da nossa união com Ele e com todos os membros do Seu corpo.
E acaso não devemos concluir que o
Espírito Santo tenha feito uso da expressão “na noite em que foi traído” com o
propósito de remediar as desordens que haviam surgido na igreja em Corinto?
Porventura não havia uma repreensão severa contra o egoísmo daqueles que
tomavam “a sua própria ceia”, na referência que o Espírito faz àquela noite em
que o Senhor da festa foi traído? Sem dúvida que havia. Pode o egoísmo
prevalecer à vista da cruz? Podem os pensamentos acerca dos nossos próprios
interesses, ou das nossas conveniências, ser permitidos na presença dAquele que
Se sacrificou por nós? É claro que não. Poderíamos nós desprezar propositada e
impiedosamente a Igreja de Deus - poderíamos nós insultar ou excluir membros
amados do rebanho de Cristo, enquanto contemplássemos essa cruz na qual o
Pastor do rebanho e Cabeça do Corpo, foi crucificado?6 Ah, não! Deixe que os
crentes tão somente permaneçam perto da cruz - que se lembrem dessa “noite em
que foi traído” - que tenham em mente o corpo oferecido e o sangue derramado do
Senhor Jesus Cristo, e logo haverá um fim a toda heresia, divisão e egoísmo.
Se ao menos nos lembrássemos de
que o Próprio Senhor é Quem preside à Sua mesa, para dar o pão e o vinho; se
pudéssemos ouvi-Lo dizer, “Tomai-o, e reparti-o entre vós” (Lc 22.17),
estaríamos melhor capacitados a encontrar todos os nossos irmãos no único
terreno cristão de comunhão que Deus pode reconhecer. Em suma, a Pessoa de
Cristo é o centro de união dado por Deus. “Eu”, disse Cristo, “quando for
levantado da Terra, todos atrairei a Mim” (Jo 12.32). Cada crente pode ouvir o
seu bendito Senhor falando desde a cruz, e dizendo acerca de seus conservos,
Eis aí os teus irmãos; e, na verdade, se pudéssemos ouvir estas palavras
claramente, procederíamos, em certa medida, como agiu o discípulo amado para
com a mãe de Jesus: nosso coração e nosso lar estariam sempre abertos a todos
os que tivessem sido assim encomendados aos nossos cuidados. A Palavra diz:
“Recebei-vos uns aos outros, como também Cristo nos recebeu para glória de
Deus” (Rm 15.7).
Existe outro ponto digno de
atenção em conexão com as circunstâncias em que foi instituída a Ceia do
Senhor, a saber, a sua ligação com a Páscoa judaica. “Chegou, porém, o dia dos
asmos, em que importava sacrificar a Páscoa. E mandou a Pedro e João, dizendo:
Ide, preparai-nos a Páscoa, para que a comamos... E, chegada a hora, pôs-se à
mesa, e com Ele os doze apóstolos. E disse-lhes: Desejei muito comer convosco
esta Páscoa, antes que padeça; porque vos digo que não a comerei mais até que
ela se cumpra no reino de Deus. E tomando o cálice (o cálice da Páscoa), e
havendo dado graças, disse: Tomai-o, e reparti-o entre vós; porque vos digo que
já não beberei do fruto da vide, até que venha o reino de Deus” (Lc 22.7-18). A
Páscoa era, conforme sabemos, a grande festa de Israel, celebrada pela primeira
vez na noite inesquecível da sua feliz libertação da escravidão do Egito.
Quanto à sua ligação com a Ceia do Senhor, consiste em ser o nítido tipo
daquilo que a ceia é o memorial. A Páscoa apontava para a cruz que estava
adiante; a ceia aponta para a cruz que ficou para trás. Porém Israel já não
estava em uma condição moral adequada para guardar a Páscoa, em conformidade
com os pensamentos de Deus acerca dela; e o Senhor Jesus, na ocasião mencionada
acima, estava afastando completamente os Seus discípulos do elemento judaico
que nela havia, e levando-os para uma nova ordem das coisas. Não deveria mais
ser um cordeiro sacrificado, mas pão partido e vinho bebido em comemoração a um
sacrifício UMA vez oferecido, e cuja eficácia havia de ser eterna. Aqueles
cujas mentes estejam vergadas sob o fardo das ordenanças judaicas, talvez ainda
possam procurar, de uma maneira ou de outra, por uma repetição periódica, seja
de um sacrifício ou de algo designado para levá-los a um lugar de maior
proximidade com Deus.7
Há alguns que pensam que na Ceia
do Senhor a alma faz, ou renova, um concerto com Deus, desconhecendo que se
tivéssemos que fazer um pacto com Deus estaríamos inevitavelmente arruinados;
visto que o único resultado possível de um pacto entre Deus e o homem seria o
rompimento do pacto por uma das partes (no caso o homem), e o conseqüente
juízo.
Graças a Deus que não existe nada
que se pareça com um pacto entre Deus e nós. O pão e o vinho, na Ceia, falam de
uma verdade profunda e extraordinária: fala do corpo oferecido e do sangue
derramado do Cordeiro de Deus - o Cordeiro provido pelo próprio Deus. Aqui a
alma pode descansar perfeitamente satisfeita; trata-se do NOVO TESTAMENTO NO
SANGUE DE CRISTO, e não de um pacto entre Deus e o homem. O concerto do homem
falhou de forma notória, e o Senhor Jesus teve que deixar passar de Si o cálice
do fruto da vide (símbolo de gozo na Terra). O mundo não tinha para Ele nenhuma
alegria - Israel havia se tornado “uma planta degenerada, de vide estranha” (Jr
2.21). Por conseguinte só podia dizer: “Porque vos digo que já não beberei do
fruto da vide, até que venha o reino de Deus” (Lc 22.18). Um período longo e
sombrio teria que vir sobre Israel, antes que o seu Rei pudesse encontrar algum
gozo na sua condição moral; porém durante este período, a “Igreja de Deus”
devia fazer “a festa” dos asmos, em todo o seu significado e poder moral, pondo
de lado “o fermento velho... da maldade e da malícia” (1 Co 5.8) como resultado
da comunhão com Aquele cujo sangue purifica de todo o pecado.
Contudo, o fato da Ceia do Senhor
ter sido instituída imediatamente após a Páscoa, nos ensina um mui valioso
princípio de verdade, a saber, que os destinos da Igreja e de Israel estão
inseparavelmente ligados com a cruz do Senhor Jesus Cristo. É verdade que a
Igreja tem um lugar mais elevado, identificada, até, com sua Cabeça
ressuscitada e glorificada; todavia, tudo se baseia na Cruz. Sim, foi na cruz
que o puro feixe de trigo foi moído e o suco da videira viva espremido pela mão
do próprio Jeová, para conceder força e alegria aos corações do Seu povo
celestial e terrenal, para todo o sempre. O Príncipe da Vida tomou da justa mão
de Jeová o cálice da ira, cálice de horror, e bebeu-o até o fim, a fim de poder
colocar nas mãos do Seu povo o cálice da salvação, cálice do amor inefável de
Deus, para que eles pudessem beber dele e esquecer a sua pobreza, e da sua
miséria não se lembrarem mais. A Ceia do Senhor expressa tudo isso. Ali o
Senhor preside; ali os redimidos deveriam se reunir em santa comunhão e amor
fraternal, para comer e beber na presença do Senhor; e enquanto fazem isto,
podem olhar para trás, para a noite de profunda angústia do seu Senhor, e olhar
para diante, para o Seu dia de glória - essa “manhã sem nuvens” (2 Sm 23.4),
“quando vier para ser glorificado nos Seus santos, e para Se fazer admirável
naquele dia em todos os que crêem (2 Ts 1.10).
3-PARA QUEM FOI INSTITUÍDA A CEIA
DO SENHOR
Devemos considerar agora, em
terceiro lugar, as pessoas para quem, e para quem somente, a Ceia do Senhor foi
instituída. A Ceia do Senhor, portanto, foi instituída para a Igreja de Deus -
a família dos redimidos. Todos os membros dessa família deveriam estar
presentes; porque ninguém pode estar ausente sem incorrer na culpa de
desobediência à ordem clara de Cristo e do Seu apóstolo inspirado; e a
conseqüência desta desobediência certamente será declínio espiritual e um
fracasso completo no testemunho para Cristo. Contudo, tais conseqüências são
somente o resultado da ausência deliberada à mesa do Senhor.
Existem circunstâncias que, em
certos casos, podem representar um obstáculo intransponível, embora possa haver
o mais ardente desejo de se estar presente à celebração da ordenança, o que,
aliás, acontecerá sempre com aquele que é espiritual. Todavia podemos
estabelecer, como um imutável princípio da verdade, que ninguém que se ausente
voluntariamente da mesa do Senhor poderá fazer progresso na vida espiritual.
“TODA a congregação de Israel” era convidada a celebrar a Páscoa (Êxodo 12).
Nenhum membro da congregação podia ausentar-se impunemente. “Quando um homem
for limpo, e não estiver de caminho, e deixar de celebrar a Páscoa, tal alma
dos seus povos será extirpada: porquanto não ofereceu o oferta do Senhor a seu
tempo determinado; tal homem levará o seu pecado”. (Nm 9.13).
Julgo que seria uma contribuição
realmente valiosa à causa da verdade, e promover os interesses da Igreja de Deus,
se pudéssemos despertar a atenção para este assunto tão importante. Há muita
indiferença e leviandade na idéia que muitos cristãos têm acerca da freqüência
à mesa do Senhor; e, onde não existe essa indiferença, há a má vontade que se
origina em opiniões imperfeitas sobre a justificação. Tanto um como o outro
destes empecilhos, embora tão diferentes em seu caráter, derivam de uma e mesma
origem, ou seja, do egoísmo. Todo aquele que é indiferente quanto a este
assunto deixará, egoisticamente, que circunstâncias insignificantes interfiram
com a sua freqüência à Ceia: será impedido por compromissos familiares, amor
próprio ou comodidade pessoal, condições do tempo, coisas sem importância, ou,
como acontece frequentemente, indisposições físicas imaginárias - coisas,
aliás, que passam despercebidas ou não têm importância alguma, quando se trata
de se atingir algum objetivo nas coisas deste mundo. Quantas vezes acontecem
que homens, que não têm energia espiritual suficiente para fazê-los sair de
casa no dia do Senhor, encontram força bastante para levá-los a andar alguns
quilômetros para compromissos nas coisas deste mundo na segunda-feira. Como
isto é, infelizmente, verdade! Como é triste pensarmos que os interesses
materiais exercem uma influência muito mais poderosa no coração do crente do
que a glória de Cristo e o bem-estar da Igreja! Pois é este o modo como devemos
encarar a questão da Ceia do Senhor. Quais seriam os nossos sentimentos, na
glória do reino vindouro, se pudéssemos recordar que, enquanto estávamos no
mundo, uma feira ou mercado, ou qualquer outro atrativo mundano, tivesse
ocupado o nosso tempo e as nossas energias, enquanto a assembléia do povo do
Senhor, em redor da Sua mesa, fora negligenciada?
Amado leitor cristão: Se você tem
o hábito de se ausentar da assembléia de cristãos, rogo-lhe que pondere o
assunto diante do Senhor, antes de voltar a ausentar-se. Pense em todos os
efeitos nocivos da sua ausência. Você está falhando no seu testemunho por
Cristo; você está prejudicando as almas dos seus irmãos, e você está impedindo
o progresso da sua própria alma em graça e conhecimento. Não pense que suas
ações não tenham influência em toda a Igreja de Deus: neste exato momento você
está, ou ajudando, ou atrapalhando cada membro desse corpo sobre a Terra. “Se
um membro padece, todos os membros padecem com ele” (1 Co 12.26). Este
princípio não deixou de ser verdadeiro, apesar de os crentes professos terem se
dividido em tantas seitas diferentes. Pelo contrário, trata-se de algo tão
divinamente verdadeiro, que não existe um único crente sobre a Terra que não
esteja sendo um auxílio ou um empecilho para o corpo de Cristo em sua
totalidade; e se há alguma verdade no princípio já apontado (isto é, que a
assembléia dos cristãos, e o partir do pão, em qualquer localidade são, ou
deveriam ser, a expressão da unidade de todo o corpo), você não pode deixar de
reconhecer que, com a ausência nessa assembléia ou sua recusa em unir-se aos
demais para dar expressão a esta unidade, você está causando um sério dano a
todos os seus irmãos, bem como à sua própria alma. Gostaria de deixar estes
comentários entregues ao seu coração e à sua consciência, em nome do Senhor,
esperando que Ele os torne convincentes.8
Porém, não só esta indiferença de
espírito condenável e perniciosa age como um impedimento para muitos para se
apresentarem à mesa do Senhor, mas as opiniões imperfeitas de justificação
produzem o mesmo triste resultado. Se a consciência não for perfeitamente
purificada, se não houver perfeito descanso no testemunho que Deus dá acerca da
obra consumada de Cristo, haverá, ou desinteresse pela Ceia do Senhor, ou falta
de inteligência na sua celebração. Só podem anunciar a morte do Senhor os que
conhecem, mediante o ensino do Espírito Santo, o valor da morte do Senhor. Se eu
considero a ordenança como um meio de ser levado a uma posição de maior
proximidade de Deus ou de obter um senso mais claro de minha aceitação, é
impossível que eu possa celebrá-la da maneira correta. Devo crer, como me
ordena o Evangelho, que TODOS os meus pecados foram tirados para SEMPRE, antes
de poder tomar o meu lugar à mesa do Senhor, com alguma medida de inteligência
espiritual. Se o assunto não for encarado à luz deste conhecimento, a Ceia do
Senhor só poderá ser considerada como se fosse mais um passo na subida para o
altar de Deus, e a Lei diz-nos que não podemos subir por degraus para o altar
de Deus, ou será descoberta a nossa nudez (Êxodo 20.26). O significado disto é
que todos os esforços humanos para se aproximar de Deus devem levar à descoberta
da nudez humana.
Vemos assim que se for a
indiferença que impede o cristão de estar no partir do pão, é algo por demais
condenável aos olhos de Deus, e prejudicial tanto para os seus irmãos como para
si próprio; e se o impedimento for um conhecimento imperfeito da justificação,
não somente é inaceitável, como desonroso para o amor do Pai, para a obra do
Filho e para o testemunho claro e inequívoco do Espírito Santo.
Mas não é com pouca freqüência que
se ouve dizer, e isso até mesmo por aqueles que professam ter espiritualidade e
inteligência, frases como: “Não tenho nenhum proveito espiritual em ir às
reuniões da assembléia: sinto-me mais feliz ficando em casa lendo a Bíblia”.
Gostaria de perguntar, carinhosamente, a essas pessoas: Acaso não devemos ter
um motivo mais nobre em nossa maneira de agir do que a nossa própria
felicidade? Não será a obediência à ordem de nosso bendito Senhor - uma ordem
dada “na noite em que foi traído” - um motivo muito mais nobre que qualquer
coisa que esteja ligada ao “eu”?
Se Ele deseja que o Seu povo se
reúna em Seu nome, com o fim expresso de anunciar a Sua morte até que venha,
devemos nós recusar fazê-lo por nos sentirmos mais felizes em nossas casas?
O Senhor nos diz para estarmos à
mesa; nós respondemos: “Sentimo-nos mais felizes em casa”. Nossa felicidade,
portanto, deve estar baseada na desobediência; e neste caso, é uma felicidade
impura. É muito melhor, se tiver de ser assim, que sejamos infelizes no caminho
da obediência, do que sermos felizes no caminho da desobediência. Todavia,
creio firmemente que a idéia de ser mais feliz em casa é mera ilusão, e o fim
de todos que são iludidos por ela confirmará este parecer. Tomé podia ter
pensado que não fazia diferença se estivesse ou não presente com os outros
discípulos, mas teve que passar sem a presença do Senhor e esperar oito dias
até que os discípulos se reunissem no primeiro dia da semana; e foi só então, e
naquele local, que aprouve ao Senhor revelar-Se à sua alma: E o mesmo
acontecerá com aqueles que dizem: “Sentimo-nos mais felizes em casa do que na
assembléia de crentes. Ficarão indubitavelmente para trás em conhecimento e
experiência; e poderão dar-se por felizes se não forem incluídos no terrível
“Ai” pronunciado pelo profeta, “Ai do pastor inútil que abandona o rebanho; a
espada cairá sobre o seu braço e sobre o seu olho direito; o seu braço
completamente se secará, e o seu olho direito completamente se escurecerá” (Zc
11.17). E também, “Não deixando a nossa congregação, como é costume de alguns,
antes admoestando-nos uns aos outros; e tanto mais, quando vedes que se vai
aproximando aquele dia. Porque, se pecarmos voluntariamente, depois de termos
recebido o conhecimento da verdade, já não resta mais sacrifício pelos pecados,
mas uma certa expectação horrível de juízo, e ardor de fogo, que há de devorar
os adversários” (Hb 10.25-27).
Quanto à objeção que se faz com
fundamento na aridez e falta de proveito encontradas nas assembléias dos
cristãos, geralmente será notado que a maior aridez espiritual será sempre encontrada
num espírito contencioso e insatisfeito; e não duvido que se aqueles que se
queixam da falta de proveito das reuniões e tiram daí um argumento para ficarem
em suas casas, gastassem mais tempo a sós na secreta dependência do Senhor,
buscando Sua bênção para as reuniões, teriam uma experiência muito diferente.
Agora, havendo demonstrado a
partir das Escrituras quem deve estar no partir do pão, vamos continuar para
considerar quem não deve estar. Neste ponto, as Escrituras são igualmente
claras: em suma, ninguém que não pertença à verdadeira Igreja de Deus deveria
estar ali. A mesma lei que ordenava que toda a congregação de Israel comesse a
páscoa, mandava que todos estrangeiros incircuncisos não a comessem; e agora
que Cristo, a nossa Páscoa, foi sacrificado por nós, ninguém pode celebrar a
festa (que deve continuar durante toda esta dispensação), nem partir o pão ou
beber o vinho em verdadeira recordação do Senhor, senão os que conhecem as
virtudes purificadoras e saneadoras do Seu precioso sangue. Comer e beber sem
este conhecimento, é comer e beber indignamente - é comer e beber para
condenação; como a mulher em Números 5, que bebeu da água amarga para tornar a
condenação mais real e terrivelmente solene.
Ora, é nisto que a culpa da
Cristandade é particularmente manifestada. Ao tomar a Ceia do Senhor, a Igreja
professa tem, à semelhança de Judas, metido a mão na mesa com Cristo e O tem
traído; tem comido com Ele, e, ao mesmo tempo, levantado o seu calcanhar contra
Ele. Qual será o seu final? Será igual ao de Judas. “E, tendo Judas tomado o
bocado, saiu logo. E...” - o Espírito Santo acrescenta, com terrível solenidade
- “...ERA JÁ NOITE” (Jo 13.30). Que terrível noite! A mais forte expressão do
amor divino tão somente desencadeou a mais forte expressão do ódio humano.
Assim acontecerá também com a falsa Igreja professa coletivamente, e cada falso
crente individualmente; e todos aqueles que, embora batizados em nome de
Cristo, e assentando-se à mesa de Cristo, têm, todavia, sido Seus traidores,
irão encontrar-se, por fim, lançados nas trevas exteriores - mergulhados numa
noite que nunca verá os alvores da manhã - atirados em um abismo de uma
interminável e inexprimível lamentação; e embora possam dizer ao Senhor: “Temos
comido e bebido na Tua presença, e Tu tens ensinado nas nossas ruas” (Lc
13.26), a Sua solene resposta, de partir o coração, será, enquanto lhes fechar
a porta, “Digo-vos que não sei donde vós sois; apartai-vos de Mim” (Lc. 13.27).
Oh, leitor, pense nisto, eu suplico a você; e se você ainda se encontra em seus
pecados, não contamine a mesa do Senhor com a sua presença; mas, em vez de ir
mais longe como um hipócrita, encaminhe-se ao Calvário, como um pobre pecador
arruinado e culpado, e receba perdão e purificação dAquele que morreu para salvar
pecadores como você.
4-A OCASIÃO E A MANEIRA DE CELEBRAR A CEIA DO SENHOR
Após termos considerado, pela
misericórdia do Senhor, a natureza da Ceia do Senhor, as circunstâncias em que
ela foi instituída, e as pessoas a quem foi designada, gostaria apenas de
acrescentar uma palavra quanto ao que nos ensinam as Escrituras sobre a ocasião
e o modo de sua celebração.
Embora a Ceia do Senhor não
tivesse sido instituída pela primeira vez no primeiro dia da semana, os
capítulos 24 de Lucas e 20 de Atos são suficientes para demonstrar, a todo
aquele que se submete à Palavra, que esse é o dia no qual a ceia deveria ser
especialmente celebrada. O Senhor partiu o pão com Seus discípulos “no primeiro
dia da semana” (Lc 24.1,30); e “no primeiro dia da semana” os discípulos
reuniram-se para partir o pão (At 20.7). Estas passagens são mais que
suficientes para provar que não era uma vez por mês, nem uma vez em três meses,
nem tampouco uma vez em seis meses, que os discípulos deveriam reunir-se para o
partir do pão, mas uma vez por semana, pelo menos, e essa no primeiro dia da
semana. Não temos qualquer dificuldade em ver que há uma característica moral
apropriada no primeiro dia da semana para a celebração da Ceia do Senhor: é
o dia da ressurreição - o dia da Igreja,
em contraste com o sétimo dia, que era o dia de Israel. E da mesma forma que,
na instituição da ordenança, o Senhor separou totalmente os Seus discípulos das
coisas judaicas (ao recusar-se a beber do fruto
da vide - o cálice da páscoa - e então instituindo uma outra ordenança),
também, no dia em que esta ordenança deveria ser celebrada, observamos o mesmo
contraste entre as coisas celestiais e terrenais. É no poder da ressurreição
que podemos anunciar apropriadamente a morte do Senhor. Quando o conflito terminou,
Melquisedeque trouxe pão e vinho e abençoou Abraão em nome do Senhor. Assim
também, nosso Melquisedeque, quando terminou o conflito e conquistada a
vitória, veio da ressurreição com pão e vinho, para fortalecer e animar os
corações do Seu povo, e soprar sobre eles aquela paz que Ele comprara com tanto
empenho.
Se, portanto, o primeiro dia da
semana for o dia indicado nas Escrituras para os discípulos partirem o pão,
fica evidente que o homem não tem autoridade para alterar o período para uma
vez por mês ou uma vez a cada seis meses. E não duvido que, quando as afeições
para com a Pessoa do Senhor são vivas e fervorosas, o cristão desejará anunciar
a morte do Senhor tão freqüentemente quanto lhe for possível; na verdade
quer-nos parecer, pelo início do livro de Atos, que os discípulos partiam o pão
diariamente. Podemos deduzir isto na frase, “e partindo o pão em casa” (At
2.46). Contudo não temos necessidade de depender da mera inferência quanto à
questão do primeiro dia da semana ser o dia em que os discípulos se reuniam
para partir o pão: somos claramente ensinados assim, e vemos a sua beleza e
adequação moral.
Isto quanto à ocasião. Quero agora
falar algo quanto à maneira de celebrar a Ceia. A principal aspiração dos
cristãos deveria ser mostrar que o partir do pão é o objetivo primeiro e mais importante de se reunirem no
primeiro dia da semana. Deveriam mostrar que não é para a pregação ou ensino
que se reúnem, se bem que o ensino possa ser um complemento feliz, mas que o
partir do pão é o assunto principal que têm em vista. É a obra de Cristo que
anunciamos na Ceia, pelo que ela deveria ter o primeiro lugar; e, depois de ter
sido plenamente anunciada, deveria haver uma plena e desimpedida oportunidade
para a obra do Espírito Santo no ministério. A missão do Espírito é expor e
exaltar o Nome, a Pessoa e a Obra de Cristo; e se Lhe for permitido orientar a
assembléia de cristãos, o que sem dúvida fará, Ele dará sempre o primeiro lugar
à obra de Cristo.
Não posso terminar estes
comentários sem manifestar meu profundo sentimento da fraqueza e a
superficialidade de tudo quanto tenho dito sobre um assunto tão importante.
Sinto, na presença do Senhor, perante Quem desejo escrever e falar, que tenho falhado tanto em mostrar
toda a verdade acerca deste assunto, que quase me sinto tentado a impedir que
estas páginas sejam publicadas. Não é que eu tenha uma sombra de dúvida quanto
à verdade que tenho procurado frisar; não: mas sinto que, para escrever sobre
um assunto como é o partir do pão, numa época em que há tanta confusão entre os
cristãos professos, há a necessidade de afirmações diretas, claras e
transparentes, para o que sinto-me pouco capacitado.
Temos apenas uma vaga idéia de
como a questão do partir do pão está ligada inteiramente com a posição e
testemunho da Igreja na Terra; e conhecemos igualmente muito pouco da maneira
como este assunto tem sido inteiramente mal compreendido pela Igreja professa.
É preciso que o partir do pão seja a afirmação clara do fato que todos os
crentes são um só corpo; porém a Igreja professa, por haver se fragmentado em
seitas, e levantado uma mesa para cada seita, tem negado este fato na prática.
Na verdade, o partir do pão tem
sido deixado para um segundo plano. A mesa, a qual o Senhor deveria presidir, é
quase perdida de vista pela maneira como é posta à sombra do púlpito, no qual o
homem preside; esse púlpito que é, oh! muitíssimas vezes o instrumento para
criar e perpetuar a desunião, é, para muitos, o objeto preponderante; enquanto
a mesa, que, se fosse convenientemente compreendida, perpetuaria o amor e a
união, é convertida em algo bem secundário. E até mesmo nos mais louváveis
esforços para se recuperar um estado de coisas tão lamentável, que completo
fracasso temos testemunhado. Que resultado tem alcançado a Aliança Evangélica?
Tem tido este resultado: tem desenvolvido uma existente necessidade entre
cristãos professos, necessidade essa que eles são confessadamente incapazes de
alcançar. Querem uma união que são incapazes de conseguir. Por quê? Porque não
querem abdicar de tudo aquilo que foi acrescentado à verdade e se reunirem em
conformidade com a verdade, para partirem o pão como discípulos. Digo, como
discípulos, e não como membros de igreja, Independentes, Batistas, etc... Não é
que tais pessoas não possam estar de posse de muita verdade preciosa, refiro-me
àqueles de entre eles que amam o Senhor Jesus Cristo: certamente que podem; mas
não possuem a verdade que iria impedi-los de se reunirem para partir o pão.
Como poderia a verdade jamais impedir os crentes de darem expressão à unidade
da Igreja? Impossível! A existência de um espírito sectário naqueles que retém
a verdade pode fazer isto, mas a verdade nunca. Mas como é que as coisas estão
atualmente na Igreja professa? Cristãos de várias comunidades podem reunir-se
para leitura, orações e cânticos, durante a semana, mas quando chega o primeiro
dia da semana, não têm a mínima idéia de darem a única prova real e eficaz da
sua unidade, que o Espírito pode reconhecer, e que consiste no partir do pão.
“Nós, sendo muitos, somos um só pão e um só corpo: porque todos participamos do
mesmo pão” (1 Co 10.17).
O pecado em Corinto era não
esperarem uns pelos outros. Isto é evidente pela exortação com que o apóstolo
resume toda a questão em 1Coríntios 11.33: “Portanto, meus irmãos, quando vos
ajuntais para comer, esperai uns pelos outros”. Por que deviam esperar uns
pelos outros? Sem dúvida para poderem manifestar melhor a sua unidade. Porém,
que teria dito o apóstolo se, ao invés de se reunirem num mesmo lugar, tivessem
ido a lugares diferentes, segundo as suas diferentes opiniões acerca da
verdade? Nesse caso, ele poderia ter dito, com a maior ênfase possível: “Não
podeis comer a Ceia do Senhor”.
Todavia, talvez alguém pergunte:
Como poderiam todos os crentes de Londres se reunir num só lugar? Respondo que
se não pudessem se reunir num mesmo lugar, poderiam, ao menos, se reunir
segundo o mesmo princípio. Como se reuniam os crentes de Jerusalém? A resposta
é: “E era um o coração” (At 4.32). Sendo assim, tinham pouca dificuldade quanto
ao local de reunião. O “alpendre de Salomão” (At 5.12), ou qualquer outro
lugar, seria adequado ao propósito que tinham. Manifestavam a sua unidade, e
isto, também, de um modo inequívoco. Nem a questão de vários lugares, nem os
vários graus de conhecimento e realizações, podiam interferir, em qualquer
medida, na sua unidade. Havia “um só corpo e um só Espírito” (Ef 4.4).
Para finalizar, eu diria que o
Senhor, com toda a certeza, irá honrar aqueles que têm fé para crer e confessar
a unidade da Igreja na Terra; e quanto maior for a dificuldade para se agir
assim, maior será a honra. Que o Senhor conceda a todo o Seu povo um “olho
simples” (Lc 11.34), e um espírito humilde e honesto.
Teu
corpo morto, aqui Senhor amado,
nós
enxergamos neste pão que foi partido;
e o
vinho, que no cálice é derramado,
aponta
para o Teu sangue puro, lá, vertido.
E
quando, assim, nos reunimos aqui,
somos,
em Ti, de “um só corpo”, a expressão.
Na cruz
- Teu sangue puro derramado ali -
Tua
morte, oh Senhor, nos deu a salvação.
Irmãos
em Ti, oh quão doce é a união -
Tua
graça vamos sempre celebrar -
é em
Teu nome, para Ti é a reunião,
pois
onde estás, sabemos, é o lugar.
Nós
temos uma esperança - que Tu virás;
a Ti,
nos ares, nós desejamos ver,
quando
Tu levares Teu povo ao Lar,
e nós
reinarmos para sempre Contigo.
Charles Henry Mackintosh
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